terça-feira, 12 de outubro de 2010

Quase mendigo

Em 2005 eu tava conversando com um amigão meu e a gente tava falando da vida, do passado e das nossas experiências. Típica conversa de birosca, bebendo uma cerveja e falando besteira. Numa dessas reminiscências eu tava falando de como eu tinha pouca roupa e como eu andava rasgado e ele me veio com a seguinte frase: Cara, nessa época você era quase um mendigo.
Ele não falou isso pra me rebaixar, a gente é como se fosse irmão mesmo, não tinha ninguém ali, só eu e ele e eu confio nele. Ele falou o que ele viu e percebeu por que afinal de contas era verdade, era isso mesmo, eu era quase um mendigo.
Anos antes (1990 mais ou menos) eu ouvi uma musica falando assim: Nunca conheci quem tivesse levado porrada...
A frase é forte à beça e depois eu li o encarte do LP (caramba, to velhão mesmo) do grupo. O grupo era a patife band e a musica era uma versão musical do poema em linha reta do Álvaro de Campos / Fernando Pessoa.
Esse poema é meio que um marco na minha vida, uma epifania corporificada de algumas características / idiossincrasias do homem comum, comigo incluído nesse bolo aí.
O começo do poema é assim:
Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irresponsavelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo.
...
O poema é gigante, coloquei na integra no fim do texto.
Me formei esse ano e repente eu me vi meio que não falando de onde que eu vim, das minhas histórias, da minha origem.
Ser pobre parece ser alguma coisa pra se ter vergonha, como se fosse culpa sua por isso. Nos colocam o ônus da vitória e do sucesso sem dar as mesmas ferramentas pra todo mundo. O engraçado é que depois a nossa sociedade covarde usa exemplos de pessoas que não tinham nada e conseguiram o sucesso e tal, mas quando você olha do teu lado tem um monte de gente igual a você, vendendo o almoço pra comprar a janta e a gente, a plebe, é quem compra essa idéia, quase como se fosse uma hipnose, de que é fraco, preguiçoso, burro e incapaz.
Sou sem futuro de pai e de mãe, minha mãe se separou do meu pai quando eu tinha 2 anos de idade e era costureira, conseguiu estudar pra se formar professora pelo colégio normal e conseguiu um emprego na prefeitura da baixada fluminense como professora, ela sempre foi concursada, mas como é de se esperar na baixada, salário baixo e distancia grande.
Meu pai, que Deus o guarde, faleceu no fim de 1989 quando eu tinha 17 para 18 anos. Foi militar temporário (CPOR) e não conseguiu enganjar, ficou frustrado com isso a vida inteira. Saiu do exército com um dinheirinho e nenhum treinamento pra vida civil. Acho que sair do exército o deixou meio doido, sem chão. Nunca mais se aprumou na vida, não conseguia trabalhar pros outros por isso, virou microempresário, mas não tinha tino pra coisa e acabou morrendo de tristeza.
Sou um sujeito com poucos recursos, tenho quase quarenta anos e sou testemunha da historia recente desse país. Vi o finzinho de o governo militar e aquela coisa da transição da ditadura pra democracia. Chorei pelo Tancredo e tudo.
Vi uma outra coisa também, vi o governo dos mesmos caras mudar de partido, de cara, mas se manter no mesmo lugar. Sujeitos indignos, sujos até a alma e ainda no poder. E vi meu país piorar cada vez mais.
Vendia vale transporte pra poder comprar comida, usava jaleco do colégio para poder ter os vales transporte pra juntar esse dinheirinho.
Levei muita marmita, comi muitas vezes uma paçoca e um copo de água por que não deu pra fazer a marmita.
Fui faxineiro, office boy, zelador, auxiliar de produção, auxiliar de metalúrgico, soldador, serralheiro, auxiliar técnico, colocador (quem faz as estruturas pras lojas dos shoppings da vida), desenhista e atualmente sou projetista mecânico.
Teve uma época que a minha vida era tão sem esperança que queria sinceramente morrer por que eu não via nenhuma chance do quadro mudar, e se mudasse, seria pra pior. Queria morrer por que tava com vergonha da minha vida.
Ainda não tenho grandes coisas, mal consigo pagar um aluguel decente pra mim e pra minha mulher, e olha que eu trabalho num emprego estatal, no melhor emprego que eu já tive na minha vida, mas não adianta, sou pobre, ganho pouco, alias, nunca ganhei bem, nunca tive grana ou oportunidade de fazer uma grana forte.
To escrevendo isso não por que eu queira ser condescendente comigo mesmo ou que eu esteja me fazendo de coitado. Atualmente estou até bem, vendo meu histórico. Fui além das minhas expectativas, me formei, to num emprego legal e com possibilidade de conseguir mais ainda.
Agora fico pensando que a atual realidade não consegue lidar com histórias como a minha e de gente sem “estirpe” (na minha terra estirpe é o nome da confluência de dois fatores: Estrutura familiar e financeira).
Não se vê histórias de gente que se deu mal à beça até sair alguma coisa decente. Fiz faculdade, li um monte de coisas, procurei me informar e vejo uma sociedade com um modelo de pessoas comuns que agem como se fossem ricos, falam difícil e tem opiniões de elite. Essas pessoas parecem esquecer instantaneamente a proporção absurda de distribuição de renda do nosso país (2% da população têm 80 % da renda do país e os outros 98% que briguem pra se resolver com os outros 20% da renda do país).
Gente que não compreende que as vezes 400 reais por mês separam ele dum office boy, dum padeiro, duma diarista?
A mídia brasileira e a identidade comum brasileira são ligadas a um sujeito comum que não existe, um sujeito que acha que é branco (pode ter a cor que tiver, a atitude não vê melanina e preconceito é universal), é de direita sem entender que sem adicional de periculosidade, de insalubridade, vale refeição, vale transporte ele não consegue se sustentar, pagar colégio de filho, trabalhar e nem comer.
Tem gente que acha um salário de 4000 reais uma enormidade, dinheiro o bastante pra pessoa se achar rica. Não, é pouco e em qualquer outro país essa pessoa saberia disso, por que não teria empregada, nem as molezinhas que a gente tem aqui no Brasil, mas agora me assusta essa classe média doente da cabeça ficar furiosa por que com bolsa família neguinho não está mais aceitando emprego de merda tipo lavador de chão ou zelador por um salário miserável, e aí dói no bolso, né!
Tão reclamando que a Maria, a empregada que pega os filhos dele na escola, dorme na casa do patrão de segunda a sexta (às vezes sábado), faz a comida, cuida da casa, faz compra, lava, passa, e faz todo o resto, ta ficando cara demais, mas esquecem que se fossem pros EUA (o sonho de todo classe média doente que eu falei) teriam que se virar pra fazer todas essas coisas sozinhos, por que com o salário equivalente deles não dá pra pagar uma empregada/escrava do jeito que a gente faz no Brasil.
Essa é uma das paradas mais cruéis que eu percebo, que nego fica com raiva não porque o bolsa família da vantagem pra pobre, mas que se o pobre não for tão pobre, não se sujeita a tudo que a sociedade “tradicionalmente” lhe oferece. Eu sei por que era o que me ofereciam, era emprego ruim, sem futuro, comida ruim, trabalho sem fim e perspectiva nula.
Detalhe, é a mesma sociedade que reclama de violência e dos problemas do nordeste e reclama por causa do assistencialismo. Esquecem que uma rede de proteção social (esse é o nome certo de ações do tipo bolsa família, Prouni e afins) gera redução de violência (pro sujeito se expor a tomar um tiro na rua roubando os outros ele tem que estar muito, mas MUITO sem futuro, muito acuado, falo por experiência própria), e a maior parte dos problemas do nordeste se concentram no fato de não haver nem investimentos nem sustentabilidade lá. Os currais eleitorais lá são mantidos por coronéis através dos recursos mais covardes, como acesso a água (se não votarem em fulano, o carro pipa não passa aqui depois das eleições) ou a alguma forma de renda (se não votarem em fulano, ele pega cortadores de cana de outro lugar), e a grana do bolsa família simplesmente faz esse esquema escroto ruir, por que o sujeito pode ter o mínimo pra sobreviver.
A mulher do Sr. José Serra chamou o bolsa família de bolsa vagabundagem, alegando que quem ganha bolsa família vai querer ganhar a maravilhosa renda de 400 reais por mês pro resto da vida. Isso é a coisa mais idiota que alguém pode dizer, sei disso por que qualquer pessoa normal, os 99% da população humana quer evoluir, ganhar mais, ter coisas melhores e não apenas ganhar o que comer, isso acontece comigo, com quem tiver lendo esse texto, com todo mundo, até com essa imbecil doente da mulher do José Serra (não sei o nome dela e nem faço questão de saber, pra mim ela tem que ir para o ostracismo mesmo).
O Sr. Fernando Henrique Cardoso chamou todos os aposentados da época do seu governo de vagabundos, gente que se aposentava cedo por que trabalhava em empregos insalubres coisa que esse senhor nem imagina o que é (eu sei um pouco por que fui metalúrgico dos 14 anos até os 28 anos, por exemplo, peguei duas pneumonias seguidas soldando duto de aço galvanizado, é insalubre MESMO). Esse discurso ocorre e tem apelo por que muitas pessoas não conhecem a realidade de gente que vive muito perto delas, mas em condições diferentes.
Nessa época me lembro de um colega falando que ia trabalhar de mergulhador por que se aposenta rapidinho, o pai dele, mergulhador também, falou pra ele pegar outro rumo, mas não adiantou. O pai dele se aposentou rapidinho, mas tem uma seqüela de uma bolha de ar no coração e ficou incapacitado de fazer qualquer coisa cansativa pro resto da vida (sabe futebol de fim de semana, brincar com os netos ou sexo? Não pode, acabou isso tudo). Foi um sujeito desses que o Fernando Henrique chamou de vagabundo.
Agora, o que eu digo é simples, avaliar a realidade tem que ser através vário olhos, não só os nossos (estou vendo outras realidades, por exemplo, 27,5% de salário pro IR é realmente uma sacanagem imensa) por que corre o risco da gente não fazer o que realmente quer, e sim o que outras pessoas querem.
Acho que no fim das contas isso que é a democracia, olhar os interesses dos outros acaba sendo o melhor jeito de beneficiar o seu próprio interesse e bem estar.


Poema em linha reta

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irresponsavelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma covardia!
Não, são todos o Ideal, se os ouço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

Um comentário:

  1. Quero ressaltar que a profissao de colocador está sendo cada vez mais valorizada nos dias de hoje.

    Inclusive o representante do sindicato dos colocadores, o ilustre Sr. Kid Bengala vai bem, obrigado. =P

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